Nesse primeiro dia de trabalho conversamos sobre nossos desejos, recapitulamos materiais que já havíamos experimentado anteriormente com as diretora. Acredito que nesse trabalho temos dois principais desafios: Um perpassa pelos vários temas que queremos abordar que vão desde a questão da água, a colonização, as festas populares e a identidade latino americana, e escolher um deles para ser o eixo condutor da dramaturgia. E o outro desafio seria buscar um lugar de encontro entre a música e a cena, pois somos uma dupla formada por um músico e uma atriz completamente leiga em relação a música. As vezes eu sinto que falamos em línguas diferentes. Queremos descobrir nesta montagem um lugar de jogo e diversão onde nossas diferenças nos potencializem e que possamos ter uma linguagem própria e em comum.
No segundo dia de trabalho o foco foi o corpo e suas linhas. Começamos fazendo o exercício Viagem Elemental, onde passamos por diversos estados no nosso corpo que estavam sempre associados a algum elemento natural (água, terra, pedra, ar, vento, fogo…). Ao longo do dia, experimentamos vários exercícios que nos fizeram criar diferentes imagens. Trabalhamos com a ideia de estátuas e prestamos atenção nos elementos de oposição, intenção, e foco que elas tinham. Desenhamos o corpo pelo espaço, entendemos o lugar da pausa. Claudia Sachs também conduziu exercícios de melodrama, para investigarmos e aprofundarmos a questão dos status que havia sido comentado antes. Experimentamos os status de vilão/ona e mocinho/a e os jogos que surgiram eram muito divertidos, neles também estavam inseridos a ideia da imagem. Através dessas experimentações que colocavam o corpo em jogo respondendo a estímulos externos, fomos construindo um vocabulário para o corpo dos personagens barros, Caulim e Bentonita. No fim do dia, com algumas peças de roupa que havíamos levado, experimentamos um figurino para as figuras. Com esses figurinos nos sujamos de barbotina, a mistura de argila em estado de osso e água, e embibides nessa matéria barro experimentamos esses corpos.
O barro no figurino e na pele foram fundamentais para a sensação de habitar esse corpo não cotidiano. O barro secando na pele nos trazia a sensação de secura e do jogo de máscara que essas figuras carregam, pois os movimentos da face ganham resistência por conta do barro ressecado. Esse primeiro encontro das figuras nos trouxe muitas surpresas e sutilezas, as quais fomos amadurecendo ao longo dos outros dias de trabalho. Uma delas era o fato das duas figuras só se comunicarem por meio de músicas e de gramelô (uma língua inventada). Essas figuras também se apresentam para mim de uma maneira muito ritualística e sagrada na mesma medida em que se deixam permear por desejos, vontades e desafios de ordem mais humana.
No terceiro dia de trabalho o foco foi a voz. Nesse dia buscamos encontrar lugares da voz através dos caminhos do corpo. A frase "voz é corpo" para mim nunca fez tanto sentido como nesse dia. Barbara nos fez encontrar lugares de apoio da voz, e entender que precisamos deixar a voz agir e modificar o corpo. O corpo deve ser o caminho para as nuances e percursos da voz. A voz é um lugar muito desafiador por lidar com algo invisível e muito íntimo seu, a voz nos revela, e isso em alguma medida pode ser assustador. Libertar esse lugar que muito é julgado e podado nos traz uma sensação de força e confiança que nos permite expandir nossos corpos. Os exercícios que fizemos também nos fez perceber que a sonoridade que produzimos é um discurso, uma história que comunica ao público, é algo vivo e que se constrói e se modifica no presente.
Depois de experimentarmos todas essas sensações com a voz, novamente colocamos nossos figurinos e jogamos com as figuras. Agora com mais alguns elementos em cena, o que nos atrapalhou um pouco. Jogamos e encontramos mais algumas relações entre Bentonita e Caulim. Nosso desafio nesse dia era encontrar conflito entre as figuras para desenvolver mais o jogo e a relação.
No quarto dia de trabalho começamos o dia conversando, e através do material que havíamos construído com as improvisações dos dias anteriores começamos a tentar definir algumas ações e linhas de dramaturgia. Queremos muito trabalhar com o elemento das máscaras em cena, dessa maneira começamos a pensar quais as máscaras poderíamos utilizar. Neste dia tivemos a ideia de trabalhar com células, cenas a serem desenvolvidas que não possuem uma ordem específica. Chegamos em 5 células: a) Chegança em ponto de osso; b) Máscara do Dilúvio; c) Máscara da Seca; d) Ritual; e) Repente do Passado. Após definir essas células, experimentamos alguns objetos que tínhamos para criar a máscara do dilúvio, e foi interessante, pois investigamos uma máscara onde o corpo inteiro é coberto e por ser dançada nos leva a fazer conexão com um lugar da máscara mais ritualística, no sentido de incorporar e representar elementos que estão para além do humano. Nesse dia também trabalhamos a noção de espacialidade e de compor com os objetos e com nossos corpos.
No quinto dia de ensaio trabalhamos com as músicas que tínhamos desenvolvido no CD Canções para Embalar a Chuva, que também faz parte da pesquisa que estamos nos baseando para a construção desse espetáculo. Barbara nos trouxe uma outra forma de encarar as músicas no espetáculo, que é olhar a música como um texto, como uma cena e não só como uma execução musical. A música precisa estar em jogo e dialogando com ações, é preciso pensar em pausas, acúmulos e intenções. A música em cena não é a mesma coisa da música para ser somente ouvida, pois junto com ela há um corpo para somar e complementar a experiência de quem está ouvindo e assistindo. Nosso trabalho daqui pra frente é estudar as músicas dessa maneira onde ela é fala e é jogo. Muitas cenas legais surgiram dessas experimentações. No final desse dia fizemos uma grande improvisação tentando passar por todas as células que tínhamos determinado anteriormente. Tivemos um pouco de dificuldade pois em algumas células onde a base era a música ainda não tínhamos a letra, somente o ritmo para jogar.
No último dia de encontro tentamos condensar o material que tínhamos levantado ao longo da semana e pensar em uma sequência que fosse lógica e nos contemplasse enquanto primeiro esqueleto do trabalho. Enquanto atriz e ator criadoras trouxemos algumas demandas para tentar inserir nessa dramaturgia que já estava sendo formada. Uma delas foi a presença de mais máscaras, e com isso surgiu uma tentativa de levar para o ensaio um esboço de cenas criadas a partir da cabeça e não do corpo. Experimentamos e vimos que não funcionou muito bem, nos sentimos perdidos e enrijecidos em cena. A sensação era que estávamos secando e estava ficando difícil de encontrar um lugar comum que ligasse todos os desejos. Nesse dia precisamos dar uma pausa. Ao longo da semana o corpo e a mente ficaram cansados. Em outro período e após um banho de lago, mais "úmides", voltamos a jogar com as figuras tentando não perder o que tínhamos construído nos outros dias e principalmente acreditar e se divertir com o que criamos.
Saímos dessa semana com muitas coisas pra digerir. Sinto que descobrimos que nosso processo de montagem é como o material da argila que não é somente passivo, ele tem alguns limites e constrói a forma junto com quem está modelando. Agora sinto que é o momento de decantar tudo que vivemos nesses últimos dias intensos e abrir a escuta para o que esse trabalho pede, aonde devemos investir e aprofundar e quais os nossos desejos que devemos abrir mão. O que estamos construindo é muito vivo e tudo que há vida demanda uma certa dose de jogo de cintura pra lidar com desvios, surpresas e impermanências. E dessa maneira seguimos esse processo buscando a festa dentro de nós para que ela nos leve Por Onde Anda a Chuva.
Comments