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Por Onde Anda a Chuva? - Estreias e últimos ensaios

Foto do escritor: La Luna Cia de teatroLa Luna Cia de teatro

Desde o último intensivo, tivemos aproximadamente um mês até o próximo que seria já seguido das estreias. Então era o momento de fechar e praticar: Concluímos as duas últimas músicas em esboço do último intensivo; mantivemos os treinos (corpo, voz, músicas e espacialidade) e o jogo das figuras; gastamos tempo pesquisando referências para o universo e subtexto das figuras (vozes, corpo fragmentado, corpo barro, movimento taky ongoy, danças tradicionais, festividade, personagens típicos, seca, chuva…). Além dos trabalhos de manter a criação, também era hora de muita produção, desde agendar os locais das estreias, dentre os quais era conversado com a liderança do território ou com uma pessoa próxima que já tinha relação com a liderança, até fechar com a fotógrafa, mediador de público, e casar a agenda de todes para que estivessem presentes nas estreias.


Também mantivemos muitas conversas pelo whats app e reuniões online, para mostrar como estavam as músicas e a dramaturgia, para acertar detalhes de figurinos, objetos e máscaras. E então chegamos no 3º Intensivo com muita energia e empolgação em reunir a equipe novamente e botar o trabalho na roda.


De 06 a 08 Junho foi o intensivo, onde estiveram reunidas as diretoras Claudia Sachs e Bárbara Biscaro, o mascareiro Sid Ditrix, a figurinista e cenógrafa Adriana Barreto, e o mediador de público Thiago Leite. Demos uma finalizada em conjunto nas máscaras, objetos e figurinos. Estava tudo maravilhoso.



Os figurinos criados pela Adriana foram geniais, e em completo diálogo com a proposta das figuras de barro. As peças pesadas e com movimento cobrem praticamente o corpo todo, deixando o menos possível de pele aparente, e que se aparente é coberta com argila. Ela propôs toucas volumosas que cobrem todo o cabelo, com tamanhos irregulares e disformes, para deixar o menos cotidiano possível, inspiradas na deformação de crânio de comunidades pré-incas. As peças das roupas foram tingidas numa mesma cor que imita o barro, meio rosadas. E o mais incrível é que, por conta do monocromatismo, o que ela propôs para trabalhar e singularizar as peças foi trabalhar com texturas. Imitando algumas técnicas de esculpir na argila, que resulta em diversas texturas numa matéria muitas vezes com uma única cor, as figuras ficaram ainda mais com aparência de bonecas/os de barro. Adriana trabalhou muito nas texturas, colando e aplicando rendas e diversos tipos de retalhos nas próprias peças. Para o intensivo ela também trouxe os objetos, dois enormes sacos que seriam as trouxas de onde as figuras itinerantes trariam o seu universo e toda a cenografia, além de seus dois cajados de ambulantes pela terra.

As máscaras foram pensadas, criadas e trabalhadas não como máscaras tradicionais do teatro moderno europeu, mas como formas expandidas de mascaramento. Duas máscaras precisavam estar em jogo, de maneira alegórica, não humanizadas, uma representando um estado de seca e a outra um estado de chuva. Em cena, ambas as máscaras seriam ambientadas por instrumentos musicais: a seca com uma flauta doce, e a chuva com uma caixa de folia. Sid Ditrix juntocom consultorias da Claudia Sachs construiu as duas máscaras, maravilhosas, que não se vestiam apenas no rosto, mas no corpo.

A máscara da seca, teve o molde inspirado no osso da anca de um boi. Inicialmente pensava-se no crânio, mas ficaria mais cotidiano e explícito. A ideia da anca foi perfeita, pois remetia a secura e o osso de um animal, mas de uma forma mais abstrata, permitindo florestar um imaginário de seca não só enquanto corpo de animal mas enquanto paisagem e vegetação. A máscara da seca, além do molde do rosto, que se veste no topo da cabeça (e não no rosto), ainda contava com várias palhas que saem da máscara e de um colete costurado com muitas palhas que chegam até os joelhos. Já a máscara da chuva não tinha rosto, nariz e frontalidade, como a da seca. Ela cobre o rosto todo com um tule volumoso, que imita o formato de uma nuvem. Logo abaixo da nuvem, vários tecidos leves preenchem o corpo da máscara corporal, leves para dar movimento. Sem frontalidade, a máscara da chuva é animada em movimentos e giros, como uma tempestade frondosa, poderosa, acompanhada aos ataques do tambor. Enquanto a máscara da seca se anima com poucos movimentos secos, staccatos e fragmentados, a máscara da chuva se anima com muito movimento e giros, um êxtase, o princípio da enfermidade da dança que vai contagiar o público.

Após os últimos ensaios gerais, com todos os objetos, figurinos, máscaras, marcações, músicas, e olhares da equipe, chegou a hora das estreias. O projeto previa 04 estreias, sendo 02 em comunidades tradicionais, uma em Canelinha e outra na Udesc.


Tekoa Vy'a - Major Gercino

A primeira apresentação, no dia 09 de junho, foi na terra guarani Tekoa Vy'a em Major Gercino, que significa Aldeia Feliz, e que de fato nos transmitiu muita felicidade em estar lá e começar lá. No começo pensávamos ser um desafio, pois é o único local onde nós da La Luna não tínhamos relação com o território, nem com a liderança. Um grupo amigo, a Cia Guita sediada na aldeia de Biguaçu, foi quem nos ajudou com essa ponte, pois são bem amigues do cacique de Major. Fomos apenas uma vez conhecer o espaço e o cacique Agostinho antes da apresentação, com objetivo de nos conhecermos pessoalmente e fechar as datas, e ele foi completamente querido e amistoso com nós. Mas como era um local novo para nós, pensávamos que seria um desafio maior começar as estreias ali. Engano nosso. Foi lindo, foi como um abraço, uma benção começar pela Aldeia Feliz. Assim que chegamos na Tekoa Vy'a, com antecedência para aquecer e se preparar, horas antes do horário da apresentação, já estavam várias pessoas nos aguardando calorosamente e aguardando ansiosas para aquele momento. Foi maravilhoso que quando fomos aquecer corpo e voz, várias crianças da aldeia aqueceram junto com a gente. Foi a melhor coisa que poderia ter acontecido para criarmos relação com o lugar e público. Então, Bárbara e Claudia conduziram um aquecimento para o elenco com a participação das crianças que estavam ali, super entregues. Foi um amor!

Depois de nos aquecermos e nos prepararmos, vestir figurino e se sujar de barro, éramos agora Bentonita e Caulim. Prontes para chegar no espaço da cena, caminhando de traz da escola onde nos preparamos, de um ponto invisível ao público até o espaço da cena. E quando saimos, Bentonita e Caulim, de trás da escola em direção ao público, lá estava o coral guarani da aldeia de Major se apresentando e cantando enquanto caminhávamos. Quanto mais perto chegávamos, mais intenso o canto ficava. Ali, naquele dia, na estreia, Caulim e Bentonita foram recebides com o canto do grupo coral, em festa. Na nossa caminhada de início, nos sentíamos chamades para o espaço como figuras sagradas que trariam a chuva e a umidade para aquele lugar e povo. E então seguiu o espetáculo, e o público completamente entregue, nos risos, no canto, nos olhares assustados também, e nem precisávamos pedir para cantarem juntes e bater palma, já estavam em festa, nossas vozes soavam juntas e numa linda harmonia. Foi perfeito, a melhor maneira de estreiar, um abraço para o elenco que estava com aquele nervosismo e insegurança de qualquer trabalho novo. Foi como uma benção!



Depois da apresentação quando voltamos de traz da escola, não mais Bentonita e Caulim, mas Emeli e Pedro, foram muitos abraços e risos, muito amor e alegria. Então Thiago fez a mediação de público com perguntas e jogos a partir da experiência daquele ato cênico, e foi lindo como as crianças nos apelidaram de vovô e vovó, velhos, na língua local. Depois da mediação, comemos juntes cachorro quente e brincamos mais um pouco. E então, era hora de seguir para a próxima apresentação.


Tekoa Tava'í - Canelinha

Então no sábado, dia 10 de junho, fomos até a Tekoa Tava'í, a aldeia de Canelinha, onde já temos relação com a liderança e algumas pessoas da comunidade. Cada apresentação foi completamente diferente da outra. Enquanto na Tekoa Vy'a, em Major Gercino, foi para um público enorme, aproximadamente 60/70 pessoas, majoritariamente crianças, de baixo de uma tenda com telhado de palha, a apresentação na Tekoa Tava'í aconteceu em um local aberto no pátio da escola, aproximadamente 30 pessoas, majoritariamente adultas. O local era maravilhoso, o dia estava perfeito para uma apresentação, um dia ensolarado de inverno, e atrás de onde fizemos o espaço de cena estava uma vista incrível das montanhas e dum verde exuberante. Como não havia tantas crianças e menos público, as figuras e a dramaturgia chegaram a uma densidade maior, como a experiência de pessoas mais vividas. Na mediação de público, foi muito encantador ouvir o relato do Cacique Kuaray, contando do sentimento de identificação que teve com as figuras Caulim e Bentonita, carregando de longe aqueles enormes sacos, disse trazer lembrança das histórias de seu pai, itinerante incansavelmente também, com a mudança nas costas em enormes sacos de viagem.


Espaço Cultura Galeão - Canelinha

No domingo houve um imprevisto, a previsão era chuva e bastante frio, então a apresentação que seria em espaço aberto, no Parque Municipal de Canelinha para público geral, teve que ser transferida para o Espaço de Cultura Galeão. Este é um galpão amplo, mas apesar dos pesares do tempo, apresentar num espaço fechado nos trouxe novas perspectivas. O espaço era fechado, mas não era cênico, era um galpão com iluminação geral e sem tratamento acústico, é um equipamento do município onde são oferecidas aulas de atividades artísticas para a comunidade. A gente da equipe já vinha se perguntando "e se chover?", não só por questão de logística, mas também de dramaturgia. E foi esse o experimento do domingo. Chovia muito, enquanto as figuras entravam em estado de seca. Mas a magia e a mentira mágica do teatro conduz o público a aventurar numa outra realidade, o tempo virou outro, nos comentários do público após o espetáculo, na mediação, não parávamos de ouvir sobre a sensação de secura, a conexão com o barro, e da sensação de umedecimento ao longo do espetáculo com a festa das figuras. Então a dúvida pôde ser respondida por enquanto, ainda funciona o espetáculo mesmo em dias que não são de seca, e mesmo em espaço fechado, apesar de ser construído para espaços abertos. E esse segundo ponto nos trouxe uma novidade, apesar de o espaço fechado condensar a energia expansiva das figuras, potencializou um dos elementos do espetáculo, as músicas. O som, as vozes, e os instrumentos condensados pela acústica do espaço fechado saltavam mais. E pelos relatos do público nos parece que a dramaturgia ficou mais perceptível e aparente, apesar de a energia de festa ficar menor. Enquanto o público das duas primeiras apresentações dançava e cantava mais com a gente, o público da cidade estava bem mais contido e menos festivo.


Centro de Artes da UDESC - Florianópolis

E por último, na segunda, dia 12 de Junho, ainda com tempo fechado, a apresentação seria na udesc ceart, para público artista e acadêmico. A princípio a apresentação seria na arena do ceart para possibilitar mais intercâmbio entre os cursos, principalmente cênicas e música, e também por ali ser um espaço aberto, mas por conta do tempo transferimos para o Espaço 2 do bloco vermelho das Artes Cênicas. Como mencionado antes, cada apresentação foi muito diferente uma da outra, e foi ótimo para nós enquanto grupo e equipe de criação vivenciar o espetáculo novo em diversas opções e oportunidades. Dessa vez, além de ser um espaço fechado, contamos com iluminação cênica, ainda que básica, luz geral, mas que a equipe querida do laboratório de iluminação fez questão de nos oferecer, pois a princípio nem usaríamos nada. Mas muito agredecides por terem oferecido e montado, porque foi ótimo também a experiência. Nos relatos do público após o espetáculo, a luz evidenciou muito a criação estética do figurino e dos objetos em barro. Foi dito que acharam tão interessante a poeira que as figuras soltavam em seus movimentos mais bruscos, e nas batidas dos tambores e dos pés. Acontece que como as figuras têm a pele banhada de argila, a maquiagem de barro vai secando, e a luz evidenciava o soltar do barro, em pó, ao longo do espetáculo. Em momentos de mais danças era possível ver uma nuvem de poeira, destacando ainda mais o estado de secura e contágio do ambiente. O mesmo se dava também com as máscaras, a iluminação trazia uma carga mais densa e destacada das figuras. Outro aspecto que foi diferente também, é que ali estávamos em casa. Como o elenco estudou na udesc, e as diretoras estudaram e deram aula na udesc, a sensação era de estar em casa. Havia muita gente amiga e conhecida na platéia. Foi a apresentação onde era mais confortável enquanto nervosismo e insegurança. E isso foi muito legal, de começar pela ordem inversa de familiaridade de espaços e público nas apresentações de estreia.



E assim concluímos, com experiências diversas, questionando qual forma e pra que público e espaço o espetáculo funciona mais. "Nesse espaço e nesse público potencializa a festividade e a relação com a platéia. Já nesse outro espaço distancia a platéia, mas potencializa a dramaturgia e densidade das figuras". Saímos das estreias com muito pra conversar e muito pra absorver e digerir. Ainda não temos todas as certezas, seguimos em reuniões e conversas online, faremos mais ensaios para manutenção do espetáculo, mas o que temos é um trabalho provocante. E estamos com gana de seguir botando na roda, levando para mais públicos, e viver a experiência que é cada apresentação, viver junto com o público, a seca, a umidade, a festa e a densidade. Enquanto grupo estamos muito felizes com o processo e o resultado, esse trabalho nos foi muito provocador e instigante. Temos agora um trabalho tão gostoso de apresentar que nos conecta tanto com o público. Esperamos poder seguir na longa caminhada de Caulim e Bentonita, atrás das memórias perdidas e ofuscadas, atrás da umidade que une as pessoas, que gera força e revolução.



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