Relato aqui o mergulho profundo, a viagem que fiz visitando lugares íntimos do meu inconsciente através do processo de musicoterapia conduzido pela musicoterapeuta Ana Claudia Dal Zot. Nesse processo senti como se estivesse criando através de sons um mundo particular, um universo onde tudo era possível.
Um ambiente livre de julgamentos foi instaurado bem na sala da minha casa. Lá eu senti muito presente a escuta e olhar da minha guia nessa viagem, a Ana. Encontrei no olhar dela uma presença de olhar muito parecida com o qual eu encontro na palhaçaria. Era um olhar vivo, atento, que te olha de verdade, e busca conexão, um olhar que vai para além do sentido da visão. Senti como se estivéssemos em uma relação de jogo e de cumplicidade muito grande. O que eu trazia, minhas sensações, pensamentos, lembranças, eram usadas por Ana como elemento para dar prosseguimento a atividade que estávamos desenvolvendo naquela situação.
Começamos a sensação com a música Rito do Marcelo Jenici, essa foi a primeira música que veio à minha cabeça quando Ana pediu para eu falar uma música. Como primeiro exercício, o que eu precisava fazer era ouvir a música e perceber como ela reverbera no meu corpo. Com máxima atenção no presente, de olhos fechados, procurei sentir a música massageando meu corpo. A música escolhida me trouxe muitas experiências sinestésicas, cores começaram a surgir, movimentos e sensações. Me senti sendo abraçada pelos sons. Dividi meu corpo em 3 partes: Pézão (Lado esquerdo da cintura para baixo; Pézinho (lado direito da cintura para baixo) e Emeli (a parte do corpo da cintura para cima). A música tocava diferente em cada uma dessas três partes, e ao mesmo tempo, me fazia através de imagens, metáforas e sensações, achar uma conexão que unia essas três partes que eu me dividi.
Seguimos o trabalho analisando e coletando informações que surgiram com esse primeiro exercício em cada uma dessas 3 partes. Escolhi um instrumento, uma cor, uma forma e palavras para cada uma dessas partes. Esse processo me conectou muito com o poder que existe no intuitivo, muitas coisas surgiam na minha cabeça que não fazia sentido. Eu me julgava e Ana falava repetidas vezes, "fala a primeira coisa que vem à mente, não racionalizao". Toda vez que ela falava isso eu me conectava muito com o que ouvia nos cursos de palhaçaria. Nesses lugares de formação somos levadas a desligar os filtros e abrir espaço para a espontaneidade, para as conexões que fazemos que estão além do racional, do concreto. Na espontaneidade surge a graça. E nesse processo com a musicoterapia muitas graças surgiram. Senti, que através desse lugar do inconsciente, consegui comunicar coisas muito profundas que eu sinto, mas que não consigo traduzir em palavras.
A Partir dessa conversa e depois de pontuar os instrumentos que seriam a voz de cada parte em que meu corpo foi dividido, demos prosseguimento aos exercícios. Minha primeira atividade era dar voz ao Pézinho, o instrumento que escolhi para ele foi a flauta. Improvisei várias coisas, muitas me surpreenderam, imaginava que a flauta soaria de um jeito e ela soou de outro. Eu não sei tocar instrumentos, não tenho domínio sobre eles e isso no início me pareceu assustador, pois não tinha controle sobre como os sons soariam. Depois de um tempo no exercício consegui relaxar e deixei fluir, fiz o exercício de ouvir de fato o que o Pézinho queria me dizer. Foi muito bonito, os buracos da flauta me remeteram aos buracos que tenho na minha perna (as minhas cicatrizes). Por fim, o pézinho me pareceu mais sensato do que eu achava que ele seria.
Depois dessa experimentação com a flauta, eu e Ana voltamos a conversar, ela pediu para que eu relatasse o que senti, o que descobri. Foi muito interessante transformar minhas sensações em palavras. Tudo parecia fazer muito sentido. Ana reparou que eu fiz o exercício inteiro de olho fechado. Ela pediu para que eu tentasse fazer o próximo exercício com os olhos abertos. Seguimos para a próxima etapa. Agora era hora do Pézão se comunicar.
Para a voz do Pézão, o instrumento que escolhi foi um baixo, como não tínhamos esse instrumento Ana mudou a afinação de um violão e deixou ele bem grave. Comecei a brincar com as cordas, usei praticamente só a mão direita para tocar o violão. Ana nessa experimentação me acompanhou com um instrumento percussivo que tinha som de água. Essa música foi muito mais calma e linear que a do exercício anterior (do Pézinho). Nessa experimentação sentia que tinha um conflito entre querer e fazer. Descobri que essa parte do meu corpo tinha medo de tocar na sua parte sensível. O Pézão sempre foi a parte mãe do meu corpo, a base. E senti que ele estava cansado desse lugar. Foi difícil finalizar essa música, ela parecia não ter fim.
Depois que a música/fala do Pézão encerrou, eu e Ana conversamos novamente, Ana comentou que apesar de ter feito o exercício com os olhos abertos eu não fiz contato visual com ela, fiquei a atividade inteira olhando para o violão enquanto eu tocava. Sinto que olhar é um canal para nos conectarmos com o mundo que está para além de nós mesmos, e as coisas que meu corpo estava me contando ali eram muito íntimas, eram coisas que para mim era difícil de compartilhar com o mundo. Tive essa percepção só depois que conversei com Ana sobre isso, durante a atividade nem sequer lembrei do olhar. Parece que quando eu estava fazendo aquele exercício o mundo inteiro desaparecia, só existia som.
O terceiro exercício era dar voz a Emeli, com o instrumento que representasse a minha voz, escolhi a sanfona. A sanfona que eu usei era um instrumento do meu avô, então ela é um objeto que carrega uma carga emocional muito forte para mim. Quando comecei a tocar ela foquei no barulho de respiração que o fole da sanfona fazia. Depois de brincar com isso, comecei a apertar as teclas da sanfona (escalas). Tentava achar algum som que fizesse coerência, buscava alguma melodia, algo que me desse conforto, mas sentia que tudo saia em desordem, descompassado. Depois de muito tempo de experimentação tocando só no lado direito da sanfona, me dei conta que a sanfona tinha o lado esquerdo, os botões do baixo. Comecei a tentar tocar com esse lado e depois fazer com que os dois lados da sanfona conseguissem conversar. O fole que era o que dividia os dois lados da sanfona era para mim como uma parede que separava o lado esquerdo do lado direito. Eu tentava tocar os dois lados juntos. Tinham momentos que saiam sons muito legais, mas a maior parte do tempo era sons nada graciosos, parecia que os dois lados tentavam conversar, mas que era difícil. Havia uma infinidade de opções de botões e combinações que eu poderia apertar. Tentei desligar do som e focar na conexão que as mãos faziam em cada lado da sanfona.
A Sanfona virou uma grande metáfora do que é meu corpo para mim. Um instrumento feito de três partes: lado direto - teclado onde se faz as melodias da música; lado esquerdo - baixo, que faz a base da música; e o fole - o que conecta essas duas partes, o ar que faz a música soar. Essas três partes respiram juntas. Percebi que a sanfona me representa muito bem. Foi muito bonito ter consciência desse pensamento. Depois de conversar com Ana após esse exercício, muitas coisas que eu senti na hora que tava tocando a sanfona fizeram sentido. Dessa vez eu tentei olhar para Ana algumas vezes enquanto eu tocava, sentia que ficava desconcertada, mas que aquilo também fazia parte do exercício.
Esse último exercício me fez olhar para minha relação com a música de uma maneira diferente, para mim tocar um instrumento foi algo que sempre via como algo rigido, duro, reto e excludente. Por não saber tocar nenhum instrumento e por ter frustração em relação a isso, enxergava a música como algo muito matemático, onde existe certo e errado, e onde o errado é ruim. Nesses exercícios que fiz com os instrumentos, senti a música de uma maneira diferente, ela era pra mim uma sensação, um pincel que desenha uma história, senti que a música pode abraçar. Percebi me ouvindo com a gravação dos exercícios o quando eu disto. Descobri que música também é descompasso, som e sensação. Me senti bem e capaz de tocar os instrumentos da minha maneira e comunicar o que eu precisava colocar para fora e ouvir.
Mais uma vez com essa experiência lembrei da palhaçaria, pois a/o palhaça/o cria um universo particular e dentro dela/e cria outros parâmetros de valor, de importância, outras lógicas que permitem transformar coisas banais e cotidianas em coisas fantásticas. Esse lugar que a palhaçaria instaura, transforma o erro em algo positivo, e olha a potência que existe em cada ser humano, e aumenta ela. Esse lugar de prazer, liberdade, ludicidade, entrega, vulnerabilidade e conexão que se esconde por trás de um nariz vermelho eu senti durante a sessão de musicoterapia que fiz com a musicoterapeuta Ana Claudia Dal Zot.
Para encerrarmos a vivência, Ana pediu para que eu falasse uma música para o Pézão, o Pézinho e para Emeli. As músicas que vieram na minha cabeça eram muito aleatórias, duas delas eram em inglês e uma em português. Depois que ouvi todas as músicas, a Ana leu as letras delas para mim e as traduziu, pois eu não entendo inglês. Me emocionei e me surpreendi com o que cada música dizia, parece que eram cartas prontas com o que cada parte queria dizer. Fiquei pensando como o inconsciente é poderoso, quantas coisas ele guarda. Senti que descobri muitos segredos que estavam escondidos no meu corpo.
Depois dessa sensação de musicoterapia, Ana Claudia Dal Zot e Pedro Torres ouviram a gravação de cada música feita nesse encontro e selecionaram trechos dessas gravações para servir como material para compor a trilha sonora do espetáculo Circo de los Pies. Foi estipulado que os instrumentos escolhidos na sensação também seriam o que iriam representar cada pé na trilha sonora do espetáculo: Pézinho seria a flauta, Pézão seria o baixo e a Asmeline seria a sanfona. Além disso, uma das músicas do espetáculo foi criada através de vários sons percussivos que se deu utilizando as talinhas (as órteses que eu usei na minha infância).
Foi muito bonito ter experienciado um processo de musicoterapia dentro de um projeto de montagem desse espetáculo. Descobrir através dos sons o que meu corpo carrega é algo muito profundo e significativo para mim. Sou grata a Ana Claudia Dal Zot por me fazer conhecer um pouquinho sobre o universo da musicoterapia e as potências que existe nele. É muito bom poder se ouvir e se amar, e conseguir traduzir sensações em palavras.
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