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Circo de los Pies: Relato sobre processo de acessibilidade

Foto do escritor: La Luna Cia de teatroLa Luna Cia de teatro

Um espetáculo teatral só se concretiza quando entra em contato com o público e suas impressões, suas vivências, seus sentimentos, enfim com o imaginário que cada pessoa carrega consigo. Uma obra artística, ao meu ver, não está ligada só a área da informação, mas sim da fruição poética. Pensando dessa maneira, foi que surgiu o desejo de investigar quais caminhos poéticos os recursos de acessibilidade em libras e audiodescrição abririam dentro desse processo de montagem. Queria investigar como esses recursos poderiam criar uma dramaturgia, um jogo com a minha palhaça, não queria que esses recursos se resumissem a traduzir o que estava sendo dito ou feito em cena. Gostaria de criar uma experiência poética a partir desses recursos.


Para encarar esse desafio contei com o suporte de amigues e artistas que admiro muito: Fernanda Rosa e Mateus Costa do duo A Corda em Si, que me auxiliaram no processo de escrita e execução do roteiro de audiodescrição do espetáculo; e Suzi Daiane, intérprete de libras - traduatriz que me ajudou a construir a dramaturgia em libras desse espetáculo. Ao longo do processo essas pessoas foram descortinando meu olhar e alargando a minha escuta, me revelaram muitas possibilidades. Aos poucos fui me aproximando do campo da acessibilidade e descobrindo que esse processo seria mais simples e divertido do que eu pensava.

Dentro desse espetáculo nos interessava pesquisar uma dramaturgia que fosse de fato inclusiva. Onde a voz da audiodescrição fosse ouvida por todas as pessoas do público (videntes e não videntes). E onde a intérprete de Libras fosse vista e percebida em cena pela palhaça e pelo público, independente deste ser surdo ou ouvinte. Para mim era importante não ignorar essa voz e esse corpo que geram acesso para determinado público. Acredito que essa escolha estética que procuramos trabalhar dentro do espetáculo também era uma escolha política. A presença desses elementos fazia parte do que eu queria dizer com o discurso do espetáculo que estava sendo criado.


Comecei a trabalhar inicialmente com a audiodescrição pensando que ela seria um voz personagem. Queria construir algo a partir da ideia da função que a voz do audiodescritor convencional tem em um espetáculo e desconstruir essa voz a partir do momento que a palhaça entrasse em contato com ela e começasse a se relacionar de fato com essa voz que vem do além. Dessa maneira, escrevi um roteiro onde no começo do espetáculo a voz do audiodescritor era como um raio X que analisa Asmeline e a cena, e que aponta para o público onde estão as falhas e as imperfeições. Nesse roteiro a voz da audiodescrição (limpa, bem articulada, sem expressão de sentimento - uma voz neutra que finge não se relacionar com nada) representava um norma, um padrão, que em contraste com a palhaça, evidenciava a essa sensação de subversão e falta de encaixe que a Asmeline carrega em si.


Foi a partir desse roteiro que fui construindo uma dramaturgia junto com a palhaça Asmeline e com os números dos pezinhos, que eram as atrações do circo. Em uma conversa com o duo A Corda em Si eles me mostraram como a minha palhaça poderia também fazer a própria descrição da cena. Entendi também que muitos outros elementos construíram acesso a obra, além de somente a voz da audiodescrição. A trilha sonora, a respiração, os sons do cenário e figurino, as falas da palhaça também criavam acesso a poesia da obra. Durante os processos de compartilhamento com Fernanda e Mateus percebi como pequei pelo excesso, nem tudo é relevante, nem tudo tem que ser audiodescrito, há muita poluição de informações e é preciso criar momentos de pausa e silêncio para que as imagens possam se formar na cabeça das pessoas e para que elas apreciem e experienciam o espetáculo também.


Depois de desconstruir uma lógica pautada por uma perspectiva visual, descobri muita poesia escondida onde eu não imaginava encontrar. A escuta da Fernanda e do Mateus me fizeram olhar para além do que os olhos são capazes de ver e traduzir. Através da condução generosa deles encontrei um lugar onde a audiodescrição virou poesia e por tanto se tornou mais uma camada do espetáculo, tocando e gerando acesso não só para pessoas com alguma deficiência visual mas para todas as pessoas que prestigiarem o trabalho.


Ao longo do processo de criação deste roteiro o caráter da voz da audiodescrição foi mudando à medida que ia entendendo as nuances que poderia existir dentro deste recurso e as maneiras de gerar acesso a partir de outros elementos e outras formas de trabalhar a audiodescrição. À medida que as cenas do espetáculo iam se desenrolando, essa voz começou a ficar mais humana, tecendo comentários onde ela colocava sua opinião, deixando escapar sotaques, uma personalidade, e interagindo e se envolvendo mais com a cena e com a Asmeline. Assim, dentro da proposta do roteiro de audiodescrição desse espetáculo há uma linha dramática onde a voz em off se modifica e se transforma ao longo do espetáculo. Ela começa reproduzindo uma audiodescrição convencional, tecida de uma falsa neutralidade e limpeza, e ao longo do espetáculo vai interagindo com a palhaça e ganhando características mais humanas. Os comentários que essa voz faz vão ficando mais profundos e poéticos. À medida que o espetáculo se desenrola o olhar dessa voz deixa de ser superficial e concreto, e passa a se tornar humano.


Para mim esse percurso que a voz da audiodescrição faz durante o espetáculo é muito semelhante ao olhar das pessoas, que não me conhecem, sobre a minha deficiência. Geralmente minha perna chama o olhar das pessoas, elas olham antes para minha perna do que para mim. E esse primeiro olhar sempre acontece embebido de curiosidade e superficialidade. Eu tenho a sensação que sou observada de maneira como se minha deficiência fosse vista antes do que eu como ser humano. Como se minha perna me definisse. À medida que esse primeiro olhar é vencido e as pessoas começam a conviver e me perceber verdadeiramente isso vai sendo desconstruído, e minha perna passa a ser o que de fato é, só uma perna diferente, e não mais a minha totalidade. No espetáculo procuro propositalmente construir essa linha dramatúrgica que vivi repetidas vezes. Busco, no início do espetáculo, direcionar o olhar do público para minhas pernas, e a medida que o espetáculo se desenrola revelo o ser humano que está por trás delas.


A audiodescrição do espetáculo Circo de los Pies é feita por Pedro Torres, integrante da La Luna Cia de Teatro. Pedro ajudou a construir o roteiro de audiodescrição e também trabalhou na trilha sonora e na sonoplastia de maneira para que também gerassem acesso às cenas. Fizemos essa escolha para tornar economicamente viável a acessibilidade em audiodescrição desse espetáculo. Já o recurso de Libras é inserido no espetáculo através de uma tradu-atriz, Suzi Daiane, uma atriz que é intérprete. Criamos a dramaturgia em libras de maneira paralela com o espetáculo, de forma que esse trabalho pudesse ser feito com com ou sem acessibilidade em Libras. Essa escolha foi feita também para viabilizar a circulação desse espetáculo.


Buscando essa viabilidade, o processo de inserir libras dentro da dramaturgia do espetáculo foi um pouco diferente. Eu comecei a trabalhar com a intérprete Suzi Daiane depois que já tinha o roteiro de audiodescrição. Diante disso tivemos que encontrar uma maneira de inserir dentro de uma dramaturgia já construída o recurso de acessibilidade em Libras. Inicialmente eu tinha o desejo de eu mesma fazer os sinais em cena, mas como minha palhaça fala muito, logo entendi que isso não seria possível. Aceitando que teria uma tradu-atriz junto comigo mergulhei junto com Suzi para criarmos uma dramaturgia em Libras que fosse além de só uma tradução do que se estava sendo dito.


O primeiro processo foi entender que Libras era uma outra língua, um novo idioma que eu não dominava. O desafio era como construir esse espetáculo bilingue de maneira que o jogo entre intérprete e atriz estivesse presente e que a narrativa tivesse sentido e conseguisse ser compreendida pelo público surdo e ouvinte ao mesmo tempo. Assim como trabalhamos com a voz da audiodescrição, queria que a intérprete de libras não fosse ignorada pela palhaça. Então partimos do entendimento que a voz da audiodescrição e a intérprete de libras eram como guias, figuras narradoras que se relacionavam com a dramaturgia e apresentavam a narrativa ao público ali presente. À medida que íamos construindo esse roteiro em libras, cena por cena, percebemos que muitas coisas não tinham necessidade de serem traduzidas e sim simplesmente contempladas. Em certo momentos não havia porque a intérprete traduzir a voz da audiodescrição, pois o que ela descrevia o público surdo estaria vendo com seus olhos.



Suzi me ensinou alguns sinais e aos poucos, em cena, fomos encontrando espaços de conversa entre a intérprete e a palhaça. Percebemos nessa construção o quanto era importante o foco, uma dar foco para outra para que as informações para o público não ficassem conflitantes. O público precisava saber para quem olhar. Foi brincando com esse jogo dos focos que encontramos imagens poéticas muito bonitas. Nós utilizamos do recurso da luz cênica para criar nuances, códigos e momentos poéticos. Suzi também passou a escolher sinais que fossem estéticamente poéticos e bonitos de serem vistos, a intérprete virou cena. Eu entendi também que minhas expressões faciais e corporais também em alguma medida comunicavam e geravam acesso.


Definimos como código para o público dois focos de luz para a intérprete, que passamos a chamar de tradu-atriz; O primeiro foco era mais próximo ao picadeiro, esse foco de luz chamado de foco de relação é onde a intérprete assume um caráter de atuação e se relaciona de maneira direta com a palhaça (nesse foco a traduatriz não traduz o que é dito, ela conversa diretamente com Asmeline); O segundo foco é mais afastado do picadeiro, nesse foco a traduatriz assume uma postura mais convencional de intérprete de libras, ela traduz o que é dito pela palhaça, em caráter de narração.


As cenas do espetáculo onde uso técnicas do teatro de animação, animando meus próprios pés, foram criadas de uma maneira que fossem visuais, ou seja que a imagem da cena desse conta de contar a narrativa que estava sendo criada. Dessa maneira nos números do Circo de los Pies a intérprete desaparecia, de maneira que o público surdo pudesse fluir e focar somente nas cenas que de fato estavam acontecendo, sem ter que dividir seu foco de atenção com a intérprete. Foi muito interessante construir esse roteiro em Libras e perceber quais eram os momentos que a atriz deveria dar foco para a intérprete e que momentos a intérprete deria foco para a cena. O movimento e as partituras que acessibilidade em libras trouxe para o projeto construíram mais uma camada poética do espetáculo, mais uma voz para o discurso da peça.


À medida que minha palhaça ia se apropriando dos sinais de libras e começava a brincar com essas pequenas partituras que os sinais me traziam, a relação com a intérprete foi amadurecendo, assumimos um jogo, em que a palhaça olhava a intérprete e então aprendia os sinais. Nesse trabalho, Asmeline se lança na tentativa e no desejo de se comunicar com o público dentro da sua diversidade. No final das apresentações foi bonito ver como o público saía das apresentações empolgado e com vontade de aprender libras.


Outro ponto que acho interessante compartilhar aqui nesse relato é sobre como conseguimos fugir do figurino todo preto que é convencionado para a função de intérprete. Nesse espetáculo Suzi usa um macacão de cor bordô, e em seu pescoço e punhos ela usa colarinhos de camisa social. Esses detalhes nos punhos e no pescoço foram pensados pela figurinista Adriana Barreto para trazer destaque para as mão e a face da Suzi. A ideia era que essas partes do corpo dela fossem também, assim como os pés, as estrelas do circo. Queríamos pessoalizar e fragmentar de alguma maneira essas partes do corpo da intérprete, assim, surgiu a ideia das mão serem vestidas também. Como na minha visão a traduatriz seria um figura formal que representasse um padrão da ordem vigente, pensamos que essas mãos usariam blusas sociais, foi aí que surgiu a ideia de fazer colarinhos para vestir os punhos e o pescoço da traduatriz.


Essa investigação com os recursos de acessibilidade foi uma pérola dentro desse processo de montagem, modificou de fato o olhar sobre nossa produção artistica. Sei que dentro do espetáculo Circo de los Pies essa pesquisa e essa mescla de linguagens é um dos principais pilares que traz potência e inovação para esse trabalho. O que desenvolvemos aqui nesse processo é uma possibilidade que existe dentro de uma infinidade de outros caminhos que envolve a acessibilidade, os recursos de libras e audiodescrição. Essa foi nossa tentativa de dar acesso à poesia e compartilhar com o público o que meus pés me contam.

Espero que esse relato possa inspirar e provocar outros grupos e artistas a olharem para essa questão da acessibilidade. Para mim esse assunto é algo que está sendo discutido, mas ainda parece muito distante de ser alcançado. Inclusão e a acessibilidade deveriam ser entendidos não como uma dificuldade e uma obrigação, mas sim como o básico, o mínimo que deveríamos fazer. Acredito que quando olhamos de verdade para essas questões, percebemos como é simples e o quanto de potência criativa existe nesse lugar. Precisamos quebrar as lógicas já estabelecidas que segregam e separam, é preciso criar desvios para lutar por um mundo verdadeiramente inclusivo.










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